Pr. José Barbosa de Sena Neto *
A Páscoa acha-se profundamente ligada à história do povo de Israel. Ela está presente em todo o período do Velho Testamento e se estendeu até à era cristã, vindo a constituir-se base do culto da Igreja Primitiva. A Páscoa propriamente dita, conforme instituída por Deus era um ritual de sacrifício (“sacrificarás a páscoa” – Deuteronômio 16.2,6) de um cordeiro, realizado na tarde do dia 14 de Nisã de cada ano, prefigurando o Cordeiro de Deus, que havia de tirar o pecado do mundo.
A festa, que começava à noite, com a ceia pascal (já no dia 15, portanto), e se prolongava por sete dias, era chamada a páscoa ou a festa da páscoa (Êxodo 34.25; Números 9.5; Lucas 2.41; 22.1; João 2.23; 13.1), a páscoa dos judeus (João 2.13; 11.55), a páscoa do Senhor(Êxodo 12.11,27), a festa dos pães ázimos(Marcos 14.1; Lucas 22.1), ou, ainda, dias dos pães ázimos(Atos 12.3; 20.6).
A sua instituição ocorreu no Egito, quando Deus protegeu os filhos de Israel da ação destruidora do anjo matador, que saiu de casa em casa, matando “todo o primogênito na terra do Egito, desde os homens até aos animais” (Êxodo 12.12). Era comemorada “na primeira lua cheia depois do equinócio da primavera”[1]
A Instituição da Páscoa
Os relatos bíblicos referentes às festas comemorativas judaicas descrevem os eventos de forma não cronológica e alternam instruções para procedimentos futuros com a descrição dos fatos ocorridos quando da instituição do evento comemorado. É o que se vê no relato da Páscoa em Êxodo 12:
1-2 – o primeiro mês do ano; 3-5 – a separação do cordeiro; 6 – o sacrifício do cordeiro; 7-11 – a aplicação do sangue do cordeiro às portas das casas dos israelitas e a ceia pascal; 12-13 – o livramento do Senhor para os filhos de Israel; 14-20 – instruções para o memorial perpétuo da libertação do cativeiro egípcio; 21-23 – o Senhor guarda os israelitas em suas casas; 24-27 – a Páscoa estatuto perpétuo para Israel; 28-30 – o povo adora o Senhor e Lhe obedece; 31-34 – Faraó manda o povo de Israel sair do Egito e pede a Moisés e Arão que o abençoem; 35-36 – os israelitas despojam os egípcios; 37-38 – Israel deixa o Egito; 39 – os israelitas comem pães ázimos por causa da pressa com que são expulsos do Egito (Deuteronômio 16.3); 40-42 – termina o cativeiro de Israel no Egito.
O Molho das Primícias da Colheita e o Holocausto
Os israelitas entregavam ao sacerdote um molho das primícias da sua saga e, no dia seguinte ao sábado pascal, o sacerdote o movia perante o Senhor, para que os ofertantes fossem aceitos. Nesse mesmo dia, os israelitas ofereciam ao Senhor um cordeiro, de um ano, em holocausto ao Senhor (Levítico 23.10-12). “No segundo dia (da festa) era oferecido um molho das primícias da seara, como oferta movida, com um cordeiro do primeiro ano para oferta queimada (Levítico 23.1-14) [2].
Instruções Para Comemorações Futuras
Cumpre observar que muitas das instruções referentes às festas de Israel (Levítico 23), como é o caso do “molho das primícias” e do “holocausto ao Senhor” (vv. 10,12), não são pertinentes ao período do Êxodo, mas são prescrições para comemorações futuras, quando os filhos de Israel já estivessem instalados na terra prometida (acontecimento que somente se deu quarenta anos depois do Êxodo). “Quando houverdes entrado na terra, que vos hei de dar” (Levítico 23.10).
Da mesma forma, a proibição de comer pão levedado durante os sete dias seguintes à Páscoa não foi imposta aos filhos de Israel logo na saída do Egito, mas foi-lhe dada como instrução para o período pós-cativeiro (Êxodo 12.14-15), como forma de fazê-los relembrar a intervenção de Deus na sua libertação (Êxodo 13.3-4).
Origens Remotas da Festa Agropastoril
¨ A Festa da Páscoa, como, de resto, todas as festas religiosas de Israel, possui aspectos de natureza agrícola e aspectos de natureza pastoril, e representa traços que, segundo alguns estudiosos, seriam semelhantes aos de uma festa (“festa da primavera”), anterior ao cativeiro egípcio e comum a todos os povos semitas, traços esses que seriam:
¨ oferta das primícias ao Senhor, tanto dos rebanhos (“Tudo o que abre a madre meu é, até todo o teu gado, que seja macho, e que abre a madre de vacas e de ovelhas” – Êxodo 34.19) como das colheitas (“As primícias dos primeiros frutos da tua terra trarás à casa do Senhor teu Deus”- Êxodo 23.19); e
¨ busca das bênçãos divinas para as comunidades pastoril e agrícola (“O Senhor mandará que a bênção esteja contigo nos teus celeiros e em tudo a que puseres a mão; e te abençoará na terra que te der o Senhor teu Deus”- Deuteronômio 28.8).
Esses traços marcantes da “festa da primavera” teriam sido absorvidos pela “festa da libertação’, que, simbolizando a miraculosa intervenção divina na história para a libertação de Israel, teria guardado em parte a significação original da oferta das primícias dos rebanhos e dos primeiros frutos da terra, como maneira de pedir a proteção divina para as comunidades pastoril e agrícola.
Como indícios bíblicos dessas origens remotas da festa são apontados:
¨ Gênesis 3.21 “E fez o Senhor Deus a Adão e à sua mulher túnicas de peles, e os vestiu”. Aqui, percebe-se que, para que Adão e Eva tivessem coberta a sua nudez e reparada a sua situação vexatória diante de Deus, fez-se necessário o sacrifício de um animal, para que dele se tirasse a pele que vestiria nossos primeiros pais.
¨ Gênesis 4.2-4: “(...) Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra. E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor. Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas, e da sua gordura (...) Aqui já se vê o primeiro registro de oferta a Deus tanto das primícias dos rebanhos como do fruto da terra.
¨ Êxodo 3.18 e 5.1: “Disse Moisés a Faraó: “(...) deixa-nos ir caminho de três dias para o deserto, para que ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus” – Disse Deus: “(...) Deixa ir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto”. A oferta de “sacrifícios ao Senhor” e a celebração de uma “festa no deserto” aqui mencionada são eventos, anteriores, portanto à instituição da Páscoa.
A Segunda Páscoa
Para aqueles que não tinham podido participar da celebração normal da páscoa em catorze de nisã, havia, ainda, uma Segunda celebração pascal, trinta dias após o dia oficial, isto é, em catorze de ivar : “Fala aos filhos de Israel, dizendo: Quando alguém entre vós, ou entre as vossas gerações, for imundo por tocar corpo morto, ou achar-se em jornada longe de vós, contudo ainda celebrará a páscoa do Senhor. No mês segundo, no dia catorze à tarde, a celebrarão; com pães ázimos e ervas amargas, a comerão”(Números 9.10-11).
Registros Bíblicos da Páscoa
Após a instituição da Páscoa, o Velho Testamento registra apenas as seguintes celebrações, ao longo da história de Israel:
¨ na saída do Egito – Êxodo 12.
¨ no deserto – Números 9.1-5
¨ já na Palestina – Josué 5.10-12
¨ no tempo do rei Ezequiel – II Crônicas 30.1-27
¨ no reinado do rei Josias – II Reis 23.21-23; II Crônicas 35.1,18
¨ depois da restauração do templo – Esdras 6.19-22.
Jesus e a Páscoa
Como varão israelita, Jesus estava obrigado Lei a, anualmente, comparecer a Jerusalém para as três grandes festas: da Páscoa, d Pentecostes e dos Tabernáculos (Deuteronômio 16.16.
A exigência da Lei é muito clara. Todos os varões israelitas terão de fazerem-se presentes em Jerusalém durante essas festas. Nada obstante, “a larga propagação do povo israelita tornou isso impossível. Os palestinos mais piedosos procuravam ao menos estar em Jerusalém durante a Páscoa” [3].
Sabendo-se que Jesus cumpriu toda a Lei, pode-se afirmar, com absoluta certeza, que ele, a partir dos doze anos (idade em que os meninos israelitas passavam a ser conhecidos como “filhos da lei”), compareceu, anualmente, a Jerusalém, nas três grandes festas de Israel, em obediência à Lei, à qual ele, como varão israelita, estava sujeito (Gálatas 4.4).
O Novo Testamento, entretanto, registra apenas três ocorrências da presença de Jesus em Jerusalém durante a Festa da Páscoa:
¨ na Sua infância: “E o menino (Jesus) crescia, e se fortalecia em espírito, cheio de sabedoria; e a graça de deus estava sobre ele. Ora, todos os anos iam seus pais a Jerusalém à festa da páscoa; e, tendo ele já doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume do dia da festa” (Lucas 2.40-42);
¨ no início de Sua vida pública: “E estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém”(João 2.13); “E, estando Ele em Jerusalém pela festa da Páscoa, durante a festa, muitos, vendo os sinais que fazia, creram no Seu nome”(João 2.23);
¨ na Sua morte: “Bem sabeis que daqui a dois dias é a Páscoa; e o filho do homem será entregue para ser crucificado”(Mateus 26.2 e João 11.55-57 e 12.1,12-23).
João registra ainda outra ocorrência da festa, mas não fala da presença de Jesus em Jerusalém durante ela: “E a Páscoa, a festa dos judeus, estava próxima. Então Jesus, levantando os olhos, e vendo que uma grande multidão vinha ter com Ele, disse a Filipe: Onde compraremos pão, para estes comerem?” (João 6..-5)
O Simbolismo da Páscoa
O cordeiro pascal era comido com pães ázimos e ervas amargosas: “E naquela comerão a carne assada no fogo, com pães ázimos; com ervas amargosas a comerão.”(Êxodo 12.8).
O Cordeiro Pascal
No dia catorze de nisã, no Egito, em cada casa dos filhos de Israel, o cordeiro pascal foi imolado e o seu sangue colocado numa bacia. Os chefes de família, cada um em sua casa, tomaram um molho de hissopo, embeberam-no no sangue do cordeiro, que estava na bacia, e com ele marcaram a verga e os umbrais de sua casa. À meia-noite, o Senhor passou para ferir os egípcios, somente não permitindo que o anjo destruidor entrasse nas casas cujas portas estavam assinaladas como sangue do cordeiro. (Êxodo 12.21-23).
O cordeiro imolado na Páscoa tipifica Jesus, que “como um cordeiro foi levado ao matadouro” (Isaías 53.7). Simboliza a redenção, a salvação, a bênção divina sobre os eleitos de Deus. Somente sobre os eleitos, e não sobre toda a humanidade. Por isso, nenhum incircunciso poderia dele comer, mesmo estando, como realmente estava obrigado pela lei (Êxodo 12.19,49) a observar as ordenanças referentes ao fermento nos dias dos ázimos:
¨ “(...) Esta é a ordenança da Páscoa: nenhum filho do estrangeiro comerá dela” (Êxodo 12.43); “O estrangeiro e o assalariado não comerão dela” (v.45); “(...) mas nenhum incircunciso comerá dela”(v.48).
O sangue do cordeiro pascal tipifica o sangue de Jesus, derramado na cruz do Calvário, para nossa redenção. O hissopo (um arbusto, ou subarbusto, que produz uma espécie de pendão, com flores espiraladas), em face da facilidade com que era encontrado, sempre ao alcance da mão, representa a fé (que “está junto de ti, na tua boca e no teu coração” – Rm 10.8), que é o instrumento através do qual os méritos de Jesus são aplicados à verga e aos umbrais do coração do pecador. Todos aqueles cujo coração estiver marcado com o sangue do Cordeiro de Deus são saltados pelo destruidor.
Nenhum osso do cordeiro pascal seria quebrado (Êxodo 12.46). Nisso também ele tipifica Jesus: “Foram, pois, os soldados, e, na verdade, quebraram as pernas ao primeiro, e ao outro que como Ele fora crucificado; mas, vindo a Jesus, e vendo-o já morto, não lhe quebraram as pernas. Contudo um dos soldados Lhe furou o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água. E aquele que o viu testificou, e o seu testemunho é verdadeiro; e sabe que é verdade o que diz, para que também vós o creiais. Porque isto aconteceu para que se cumprisse a Escritura, que diz: Nenhum dos seus olhos será quebrado”(João 19.32-36).
Os Pães Ázimos
O pão ázimo da Páscoa, cuja massa não teve tempo para fermentar, simbolizava o povo apressado e aflito, fugindo, sem tempo para descansar: “Nela (na festa) não comerás levedado; sete dias nela comerás pães ázimos, pão de aflição (portanto apressadamente saíste da terra do Egito), para que te lembres do dia da tua saída da terra do Egito, todos os dias da tua vida”. (Deuteronômio 16,3).
As Ervas Amargosas
O cordeiro pascal tipifica o libertador, cujo sangue impedira a entrada do anjo matador nas casas dos filhos de Israel; os pães ázimos simbolizavam o povo em fuga, apressado e aflito, sem tempo para descansar; e as ervas amargosas simbolizavam as amarguras vividas no cativeiro e agora deixadas para três.
Entendendo I Coríntios 11.17-34
O Banquete e a Ceia
A descrição da Ceia do Senhor encontra-se, nas Escrituras, em quatro autores diferentes: Mateus (26.17-29), Marcos (14.12-26), Lucas (22.7-23) e Paulo (I Coríntios 11.17-34).
O texto clássico sobre a Ceia do Senhor, porém, é o de I Coríntios 11.17-34, no qual o apóstolo Paulo, diferentemente dos demais escritores inspirados, não apenas descreve a instituição do memorial pelo Senhor, mas encaixa o evento na situação real da Igreja de Cristo e adorna-o de comentários doutrinários.
As fantasias e superstições de líderes evangélicos oriundos da Umbanda ou do Kardecismo e a nefasta influência de livros de escritores anglicanos e luteranos, que interpretam de modo místico e sacramental os textos referentes à Ceia do Senhor, principalmente o texto clássico paulino, têm inseminado na comunidade evangélica idéias católicas acerca dos elementos da Ceia do Senhor.
Assim, afigura-se-nos necessário, neste estudo, fazer uma breve análise do texto de I Coríntios 11.17-34 (juntamente com outras duas porções das Escrituras, ambas em I Coríntios, ambas importantes para a compreensão desse texto clássico, uma anterior a ele, 10.14-17, e a outra, posterior, 12.12-13,27, dentro do seu contexto imediato), dissecando-lhe aqueles pontos mais distorcidos pelas seitas “católicas-evangélicas”. Cumpre-nos, igualmente, analisar também o texto de João 6.33—58,63, que, embora não se refira à Ceia do Senhor, tem sido alvo de distorções semelhantes.
Observe-se a expressão “comer ... beber indignamente”. “Indignamente” é advérbio de modo. Desempenha a função sintática de adjunto adverbial e não de predicativo do sujeito, um qualificativo. Indica a maneira como alguma coisa é feita. Comer indignamente não é comer (estando) indigno (predicativo), mas é comer (agindo) de maneira indigna (adjunto adverbial). “Indignamente” refere-se a atos, a atitudes, e não a pessoas ou coisas. Uma pessoa pode ser considerada "digna” (adjetivo), mas, ainda assim, em determinada circunstância, agir “indignamente” (advérbio de modo). Da mesma forma uma pessoa “indigna” pode agir “dignamente”.
E é interessante observar que as pessoas que se consideram indignas são geralmente as mais dignas. Por outro lado, as pessoas mais indignas são aquelas que mais se consideram dignas. Os crentes mais consagrados realmente ao Senhor são, invariavelmente, os que se reconhecem mais indignos da misericórdia de Deus e confessam que devem tudo a Sua graça. Já os religiosos fariseus são quase sempre arrogantes e se julgam os mais dignos entre os homens. A nossa indignidade diante de Deus é uma realidade irrefutável e nem podemos esquecer que foi Deus “que nos fez idôneos para participar da herança dos santos na luz” (Colossenses 1.12).
O texto paulino não diz que os coríntios eram indignos ou se achavam indignos de participar da Ceia do Senhor, mas que, ao reunirem-se para cear, estavam agindo “maneira indigna”. A maneira indigna como eles agiam é que era indigna: além de haver dissensões entre eles, os mais abastados financeiramente levavam abundante provisão de comida e bebida para fazer um verdadeiro banquete antes da Ceia do Senhor e, nessa lauta refeição, cada um comia e bebia o que levava, sem a necessária ordem e sem nenhuma consideração para com os irmãos mais pobres, que, nada tendo para levar, nada comiam e nada bebiam. Nessa desordem, era natural haver, na hora da Ceia do Senhor, pessoas sentindo-se humilhadas e desprezadas!
Era esse o problema dos crentes de Corinto. Tanto que o apóstolo recomenda-lhes que, quando eles se ajuntassem para comer, “esperassem uns pelos outros”, e se alguém tivesse com fome, comesse em casa, a fim de não se reunirem para condenação (10. 33-34). O problema era de fácil solução, portanto. Por sinal, convém não esquecermos que ‘banquete em igreja’ é quase sempre sinônimo de problema! Por isso é que indaga o apóstolo: “Não tendes porventura casas para comer e para beber?”(I Coríntios 11.22).
Em face da maneira indigna como se portavam os coríntios na celebração do
memorial da nova aliança, Paulo afirma que não é a Ceia do Senhor que eles comem, mas a ceia deles mesmos. O apóstolo não faz nenhuma restrição ao cerimonial ou à liturgia da celebração empregados por eles. Qualquer que fosse o ritual por eles adotado era vazio com certeza! Não anunciava a morte do Senhor até que Ele venha! Faltava-lhes o “serem um”. A união pelos laços do amor é que seria a grande mensagem, pois proclamaria ao mundo a transformação de vida neles operada pelo poder do Senhor ressuscitado: “Para que todos sejam um, como Tu, ó Pai, o és em Mim, e eu em Ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que Tu me enviaste”(João 17.21).
memorial da nova aliança, Paulo afirma que não é a Ceia do Senhor que eles comem, mas a ceia deles mesmos. O apóstolo não faz nenhuma restrição ao cerimonial ou à liturgia da celebração empregados por eles. Qualquer que fosse o ritual por eles adotado era vazio com certeza! Não anunciava a morte do Senhor até que Ele venha! Faltava-lhes o “serem um”. A união pelos laços do amor é que seria a grande mensagem, pois proclamaria ao mundo a transformação de vida neles operada pelo poder do Senhor ressuscitado: “Para que todos sejam um, como Tu, ó Pai, o és em Mim, e eu em Ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que Tu me enviaste”(João 17.21).
Comunhão é união, é identificação de idéias e propósitos, é companheirismo, é parceria. A comunhão do Corpo de Cristo é a integração dos crentes, unidos pelos laços do amor! Participar do mesmo pão (10.17) é sinal de comunhão (10.16). Aquele, pois, que se senta à mesa do Senhor (10.21) e, ao mesmo tempo, nega com seus atos a comunhão com os membros do Corpo de Cristo, não está “discernindo o Corpo do Senhor” (11.29) e, como conseqüência, está participando indignamente da comunhão desse corpo. Comer e beber indignamente é fazer como faziam os coríntios, que, dizendo participar do memorial da nova aliança no sangue de Jesus, maltratavam os crentes mais humildes, “não discernindo o Corpo do Senhor’.
Discernindo o Corpo do Senhor
“Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama a seu irmão permanece na morte” (I João 3.14). Todavia, entre os coríntios, havia dissensões, formavam-se partidos, fazia-se acepção de pessoas. Faltava-lhes o amor, “que é o vínculo da perfeição” (Colossenses 3.13), pois desprezavam e envergonhavam membros do Corpo de Cristo. Faltava-lhes discernimento para compreender que “o corpo de Cristo” são os crentes e não o pão da ceia! Não discerniam o Corpo do Senhor, que somos todos quantos temos o Espírito de Cristo (Romanos 8.9). É possível que devotassem grande respeito e veneração aos elementos da ceia (como muitos faz hoje em dia!), mas Jesus não estava no pão e sim nos irmãos, inclusive, e paradoxalmente, naqueles que estavam sendo desprezados e envergonhados. Discernir algo é identificá-lo, distingui-lo de outras coisas. Faltava-lhes discernir que o Corpo de Cristo “é a Igreja” (Colossenses 1.24).
Para Paulo, a expressão “Corpo de Cristo” designa sempre a comunidade dos remidos (Romanos 12.5; I Coríntios 12.12-27; Gálatas 3.27-29; Efésios 1.22-23; Colossenses 1.18-24; 3.15). Mesmo o pão da Ceia do Senhor, que representa o corpo físico de Cristo, o Cordeiro de Deus, imolado por nós na cruz, representa também a Igreja, que é o Corpo de Cristo (I Coríntios 10.17; Efésios 1.22-23).
Observe-se a identificação que o Senhor faz de Si mesmo com o Seu povo. É enfática demais para que possa passar despercebida a alguém: “Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a Mim o fizestes” (Mateus 25.40). Assim também, quando Saulo perseguia os discípulos do Senhor, este, no caminho de Damasco, indagou-lhe: “Saulo, Saulo, por que Me persegues?” (Atos 9.4).
O texto paulino não defende uma ‘teologia sacramental’, onde os elementos da Ceia teriam poderes sobrenaturais, de modo que quem deles come em santidade receberia ricas bênçãos celestiais enquanto que quem deles come estando “indigno”, isto é, estando em pecado (com alguma falha em sua vida), sofreria severo castigo.
Ora, o grande mistério de Deus, “que esteve oculto desde todos os séculos, e em todas as gerações”, não é Cristo no pão da ceia, mas é “Cristo em vós (nós), esperança da glória” (Colossenses 1.26-27). O pão representa o Corpo de Cristo, a Igreja é esse corpo. Um é um símbolo, o outro é a realidade!
Disciplinados Pelo Senhor
O apóstolo Paulo explica que se o crente, quando errar, se julgar a si mesmo, vendo onde errou e procurando corrigir-se do erro, não será julgado pelo Senhor. Mas se o crente não se corrige a si mesmo, antes permanece no erro, o Senhor o disciplina, pois quando o Senhor julga o crente é para sua correção, porque o crente, por pertencer a Jesus, não pode ser condenado com o mundo (vv. 31-32). A falta de amor para com os irmãos, a falta de ordem na Igreja e a falta de autodisciplina por parte dos crentes estavam trazendo sobre eles a disciplina do Senhor. ( I Coríntios 11.30).
A relação entre Deus e o pecador não convertido é uma relação entre o juiz e o réu. Não há comunhão, não há amor, não há disciplina. Mas, quando o pecador se converte ao Senhor, a sua relação com Deus passa a ser uma relação entre Pai e filho. Uma relação em que há comunhão, amor e disciplina. Para os que estão em Cristo Jesus, já não há “nenhuma condenação” (Romanos 8.1), mas há disciplina! (Hebreus 12.5-8)
Isto é o Meu Corpo
Os evangélicos temos rejeitado, através dos tempos, não somente a doutrina da transubstanciação católica romana (presença real de Cristo na Ceia pela transformação dos elementos pão e vinho no Seu corpo e sangue) como também a da consubstanciação luterana (presença real de Cristo na Ceia, pela união de Cristo com os elementos pão e vinho), por entendermos que tanto uma como a outra, embora amparadas por bem elaborados argumentos filosóficos, carecem de fundamento bíblico e, o que é pior, induzem à idolatria.
A ‘Igreja Católica Romana’ afirma: “No santíssimo sacramento da Eucaristia estão ‘contidos verdadeiramente, realmente e substancialmente o Corpo e o Sangue juntamente com a alma e a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e, por conseguinte, o Cristo todo’ ”[4] Afirma, também: “A presença real de Cristo resulta da singular conversão de toda a substância do pão no corpo e de toda a substância do vinho no sangue, ainda que permaneçam as espécies de pão e de vinho. A esta conversão a Igreja católica chama com propriedade (aptissime) transubstanciação.” A encíclica Mysterium Fidei, de 3 de setembro de 1965, assinada por Paulo VI traz novas interpretações. As categorias e a linguagem de tridentina marcadas pela teologia escolástica, já se tornaram irrelevantes para o homem moderno. Nos anos 60 foi de grande notoriedade a preocupação por corresponder à mentalidade moderna, dando chance a chamada ‘crise holandesa, preocupação esta que aflorou de modo muito forte nos Países Baixos. Os teólogos católicos continuaram defendendo que a eucaristia é um evento de salvação em favor dos homens, mas o importante, naquele momento, era “o novo significado e a nova finalidade”. Do pão e do vinho depois da consagração. “Transfinalização e transignificação” seriam para os tempos modernos bem mais adequados para traduzir a assim chamada “transubstanciação”.
A encíclica “Mysterium Fidei” veio trazer a modo de confissão da fé católica algo importante com toque suave na mudança da teologia escolástica, cujos tópicos, a seguir, são de fundamental importância:
“Deve-se continuar mantendo a linguagem tradicional da Igreja (católica) sobre a presença real eucarística e a conversão. As fórmulas podem ser investigadas e explicadas, mas nunca em sentido diferente ao que foram propostas”[5]. “Há presença real de Cristo na Igreja (católica), mas a presença de eucarística é “substancial”: ‘Cristo inteiro, Deus e homem, se faz presente’. Não se reduz à presença “espiritual” de Cristo glorificado que existe no cosmos, nem a um sinal da intervenção de Cristo em favor de seus fiéis”[6]. Sobre as novas interpretações, “Com a transubstanciação, as espécies de pão e de vinho revestem novo significado e têm um novo fim; mas esse novo fim e esse novo significado supõem uma nova realidade ontológica . Porque há transubstanciação, também há transignificação e transfinalização”[7] O que podemos observar é que os tratados teológicos romanistas, numa tentativa desesperada para explicar o não explicável, cada vez mais penetram numa emaranhado de opiniões ôcas e sem sentido resultantes da ilógico proveniente da interpretação literal das palavras de Jesus ao instituir a Ceia Memorial. O teólogo Jesús Espeja, bastante respeitado nos meios do catolicismo romano, assim afirma: “Os termos ‘transubstanciação’ e ‘transfinalização’ (ou ‘transignificação’) devem ser usados com reserva. O primeiro, porque “substancia” nas ciências positivas já não tem o significado que teve na filosofia grega que serviu de base à teologia escolástica, comum aos padres conciliares de Trento. A “transfinalização” (ou “transignificação”) corre o perigo de ser imprecisa para expressar o realismo da presença”[8]
Por outro lado, muitos grupos evangélicos têm para com os elementos da Ceia do Senhor (“santa ceia”, para eles) uma devoção igual á que os católicos romanos têm para com a hóstia consagrada. Um verdadeiro culto de “latria” (culto de adoração suprema a Deus e à hóstia consagrada).
A ‘Igreja Católica Romana’ nos assegura que após a oração consecratória sobre o pão e o vinho, são transformados em alguma coisa diferente: corpo e sangue. Entretanto, a linguagem empregada nos textos de Mateus 26.26-29; Marcos 14.22-24; Lucas 22.19-20 e I Coríntios 11.23-26 não conduz a esta conclusão! O que podemos perceber é que era ação de graças e louvor rendidos a Deus, exatamente como o Senhor Jesus fez, quando alimentou a multidão, dando graças pelos pães e pelos peixes (João 6.11). O que nos chama à atenção são as palavras de Jesus depois da ação de graças: Isto é o meu corpo... Isto é o meu sangue, o sangue da aliança”. Como poderia Jesus dizer que em Suas mãos estavam o seu próprio corpo e o Seu próprio sangue, quando Ele ainda estava vivo no meio dos discípulos, habitando o mesmo corpo com o qual nascera da bendita Virgem Maria e com o qual andara e ainda estava andando na companhia dos discípulos? Portanto, a assim chamada “transubstanciação” (ultimamente travestida de “transfinalização” ou “transignificação”), fere frontalmente a inteligência das pessoas sensatas! O católico não procura a razão lógica da sua fé, crê em tudo que os seus teólogos lhe enfia garganta abaixo, pois se “Roma locuta, causa finita”, aceita-se tudo sem contestação, daí o significado da palavra “fiel” que o católico recebe!
Outro fato muito interessante para o qual devemos lançar nossos olhares é o fato de Jesus, após ter abençoado o vinho, o tenha chamado de “o fruto da videira”! (Mateus 26.29; Marcos 14.25; Lucas 22.18). Isso demonstra de forma cristalina que a substância do vinho não havia mudado! E o apóstolo Paulo age do mesmo modo, quando chama os elementos da Ceia do Senhor de pão e de vinho!(I Coríntios 11.26). As narrativas da instituição da Ceia do Senhor e na Carta de Paulo aos Coríntios tornam claro, cristalinas, que o Senhor Jesus falou em sentido figurado, quando disse: “Este é o cálice da nova aliança no meu sangue...” (Lucas 22.20b). E Paulo, escrevendo a sua Primeira Carta aos Coríntios, após 25 anos que Jesus instituiu a Ceia, cita Jesus dizendo: “Este cálice é o novo testamento (ou nova aliança) no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes (manducação) este pão e beberdes (potação) este cálice anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha” (I Coríntios 11.25-26). Notemos que nestas palavras Ele usou uma dupla figura de linguagem. O cálice representa o vinho e o vinho é chamado de novo testamento ou nova aliança. O cálice não era literalmente a nova aliança, embora definitivamente declarado, como o pão foi declarado ser o Seu corpo. Eles não beberam o cálice literalmente, como também não beberam literalmente a nova aliança! Como é ridículo dizer que eles assim o fizeram! O seu corpo também não foi o pão literal, nem o vinho, seu sangue literal. Depois de dar o vinho aos Seus discípulos Jesus disse: “Pois vos digo que, de agora em diante, não mais beberei do fruto da videira, até que venha o reino de Deus” (Lucas 22.18). Assim o vinho, mesmo que dele Jesus tenha tomado e depois dado aos Seus discípulos, continuou sendo o fruto da videira! Nenhuma “transubstanciação” ou “transfinalização” ou “transignificação” houve na substância! E isso aconteceu depois da oração de consagração que Jesus fez, quando a Igreja Católica supõe e ensina que aconteceu a alteração, mesmo tendo Jesus e Paulo declarado que os elementos, a substância, continuam sendo pão e vinho!
Voltamos a enfatizar que na ocasião em que estas palavras foram ditas, o pão e o vinho estavam sobre a mesa, DIANTE DELE, e Ele estava assentado à mesa em Seu corpo, como qualquer pessoa viva! Lembremo-nos que a crucificação ainda não havia acontecido! Eles – Jesus e Seus discípulos – comeram a Ceia antes da crucificação! Portanto, não podemos fazer algo em memória de alguém que está presente, como a Igreja Católica Romana faz, dizendo que Cristo está presente na missa! Notemos que ao invés de corpo, sangue, alma e divindade nos elementos, Paulo vê pão e cálice. Se o apóstolo Paulo cresse na presença real, corporal de Cristo sob as aparências do pão e do vinho, com certeza ele não teria dito: “até que Ele venha”, pois Jesus já estaria ali presente! O próprio Jesus ao afirmar: “... fazei isto em memória de Mim” (Lucas 22.19), teria excluído “ipso facto” a presença! Esta é a lógica! Da mesma forma se no pão Jesus se tornasse física e corporalmente presente – como afirma a Igreja Católica Romana “... debaixo destas (espécies do pão e do vinho) está Cristo completo, presente na sua realidade física, mesmo corporalmente...”[9] evidentemente a Ceia não em memória! A Ceia do Senhor instituída por Jesus não foi um tipo de operação mágica, mas exclusivamente um memorial! E com que finalidade? Com o objetivo de convocar todos os cristãos, através dos séculos, a que se lembrassem da crucificação do Senhor Jesus e de todos os benefícios dele proveniente! Um memorial não representa a realidade, como no caso de serem o pão e o vinho o Seu verdadeiro corpo e sangue, mas uma coisa totalmente diferente, que serve apenas como lembrança da coisa real. É perfeitamente óbvio a qualquer leitor observador inteligente que a Ceia do Senhor foi especialmente instituída como uma simples festa memorial. De maneira alguma, como uma reencarnação de Cristo! Segundo a Igreja Católica Romana, aquilo que os sentidos apreendem depois da consagração do pão e do vinho, na assim chamada “transubstanciação”, são os acidentes. Ora, quando Jesus transformou a água em vinho, em Caná da Galiléia, as características da água desapareceram, porque a água deixou de existir, conforme João 2.9-10. Esse episódio é bastante claro à nossa inteligência!
A posição do Luterianismo não difere muito da posição católica romana. E os próprios luteranos confessam essa realidade: “Nossas igrejas são falsamente acusadas de ter abolido a missa. Porque a missa é ainda retida entre nós e celebrada com grande reverência”[10].
A “transubstanciação” católica romana e a “consubstanciação” luterana são, em síntese, a mesma coisa, conforme vemos no “Relatório da Comissão Mista Católico-Luterana sobre a Eucaristia”:[11]
¨ “cristãos católicos e luteranos confessam em comum que a presença eucarística do Senhor Jesus Cristo visa o recebimento do crente, não estando, porém, limitado ao momento do recebimento, e igualmente não dependendo da fé do receptor por mais que ele seja orientada para esta”;
¨ “a discussão ecumênica demonstrou que essas duas posições não mais precisam ser consideradas como contraposições mutuamente excludentes (transubstanciação e consubstanciação). A tradição luterana consente com a tradição católica na afirmação que os elementos consagrados não continuam sendo simples pão e vinho, mas em virtude da palavra criativa são distribuídas como corpo e sangue”;
¨ “segundo a doutrina católica, o Senhor proporciona sua presença eucarística para além da realização do sacramento, enquanto persistem as formas de pão e vinho. Correspondentemente, os fiéis são convidados a prestar veneração a este santíssimo sacramento aquele culto de latria que é devido ao Deus verdadeiro”; (...) “também para eles (os luteranos) culto, veneração e adoração são adequados tanto tempo quanto Cristo permanece sacramentalmente presente”.
Ora, para quem adore a Jesus e creia que Ele está de alguma forma, presente nos elementos da Ceia, a conseqüência natural será a adoração desses elementos. E é exatamente isso que fazem os católicos, quando adoram Jesus na hóstia consagrada. E é exatamente isso que fazem os luteranos em relação aos elementos da sua eucaristia, prestando-lhes “culto, veneração e adoração” enquanto, segundo o entendimento luterano, Ele permanece presente nesses elementos.
Alguns grupos evangélicos existentes entre nós têm para com os elementos da Ceia do Senhor (por alguns deles chamada de “santa ceia”) um forte sentimento de “latria”, de modo que lhes prestam um verdadeiro “culto latrêutico”, semelhante ao que o catolicismo romano devota à hóstia consagrada. Em face dessa veneração, as sobras de pão e de vinho ‘consagrados’ são para eles mantidas intocáveis e ou são ritualisticamente enterradas ou ficam guardadas até que, cobertas de mofo, sejam comidas pelos bichos, quando então, e somente então os vasos onde estiveram depositados podem ser lavados. Mas isso é idolatria! E idolatria que se vem infiltrando no seio da comunidade evangélica! E aqueles que hão de dar contas do rebanho permanecem indiferentes! O culto aos elementos da Ceia, qualquer que seja a sua forma, é idolatria. Tanto faz estar amparado na teoria da transubstanciação como na tese da consubstanciação, ou simplesmente escorada na palavra carismática do líder. E os idólatras não têm parte no reino de Deus (I Coríntios 6.10). É por isso que o texto de I Coríntios referente à Ceia do Senhor começa com esta advert6encia: “Portanto, meus amados, fugi da idolatria”. (10.14).
O texto de João 6.33-63, mormente os versículos 33-58, que o catolicismo romano e as seitas católicas utilizam como pretensa base bíblica para a tese da transubstanciação ou da consubstanciação, não se refere à Ceia do Senhor, mas à conversão pela fé em Jesus. Os teólogos católicos, como é do seu hábito, transgridem na norma primacial da compreensão da Bíblia sagrada ou de qualquer obra literária: a de interpretar o texto pelo contexto. Isolam parte do texto do discurso de Jesus feito na sinagoga de Cafarnaum e dão uma interpretação literal às palavras de Jesus, mas, se fossem honestos, deveriam adotar o mesmo critério em todo o discurso, pois várias vezes Jesus usou a expressão pão. Ao admitir a literalidade do vocábulo pão, certamente Jesus teria descido do céu na forma material, isto é, em forma de pão! E quem comesse literalmente desse pão viveria para sempre. Por que não se há de ser lógico, admitindo-se igual sentido figurado quanto aos vocábulos carne e bebidas?
Este texto tem sido utilizado para justificar a tese pagã-católico-romana de que, para ter a vida eterna, o pecador tem de comer (manducação) de Cristo no pão da ceia e beber (potação) o sangue de Cristo no vinho da Ceia. Comer e beber carne e sangue humano é coisa repulsiva e abominável a Deus, e também a qualquer pessoa mentalmente sã, especialmente aos judeus. Essa prática é contrária às Escrituras e ao senso comum. (Levítico 17.10; Deuteronômio 12.16). Na lei judaica havia severa penalidade contra quem comesse sangue.
Comer a carne e beber o sangue de Jesus é vir a Ele, é crer nEle! Ele próprio o disse: “Na verdade, na verdade vos digo que aquele que cr6e em Mim tem a vida eterna” (v. 47). Comparem-se os versículos 40 e 54. A mensagem é a mesma, sendo que, no verso 54, a mensagem do verso 40 é repetida de maneira figurada. Mas mente carnal é apegada à realidade física e incapaz de perceber a realidade espiritual. Quer ver e apalpar para crer. Precisa mastigar (manducação) e engolir (potação). O Deus Espírito não lhe basta! Precisa de um deus físico, material, palpável, mastigável até!
O mais impressionante é que quando Jesus quis falar aos Seus discípulos sobre assuntos importantes, isolou-Se com eles (Mateus 10.1-42; 18.1-35 dentre outras). Havia uma diferença enorme entre Jesus ensinar aos Seus discípulos e pregar às turbas (Mateus 11.7). Ao povo Ele pregava a Palavra, comparando-a a semente, para que se convertesse e aos Seus discípulos favorecia explicações bastante pormenorizadas que os preparassem para bem melhor servi-Lo (Mateus 13.10-23).
Outro detalhe importante, é que no Evangelho de João a Ceia do Senhor não é mencionada nesta passagem e nem está em seu contexto e nem em todo o Evangelho segundo João a ela se refere, pois se houvesse algum vínculo com o sermão na sinagoga de Cafarnaum com a Ceia do Senhor, certamente João teria mencionado, pois João dos quatro evangelistas o mais meticuloso, mas ele não alude nada! É o único evangelista que não menciona nada, absolutamente nada, a respeito da instituição da Ceia por Jesus!
Portanto, comer a carne de Cristo e beber o Seu sangue é crer nEle! O “comer” e “beber” são figuras do crer. Quem crê no Senhor Jesus torna-se um com Ele, pois Paulo escreveu: “Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (I Coríntios 6.17). Faz-se habitação do Espírito de Cristo (Romanos 8.9-11). Cristo está em nós porque nEle temos crido!
O grande mistério de Deus, que esteve oculto dos séculos e das gerações, é realmente Cristo em nós, “a esperança da glória” (Colossenses 1.26-27). Mas não O recebemos ingerindo-O em forma de pão de farinha de trigo e vinho. Ou “ainda não compreendeis que tudo o que entra pela boca desce para o ventre, e é lançado fora?” (Mateus 15.17). Nós, os crentes, não praticamos a teofagia!
Portanto, a interpretação do texto de João 6 como referente à Ceia do Senhor, absolutamente contraria aos princípios da hermenêutica sadia, tem como objetivo apresentar um texto bíblico de defesa da tesa pagã sacramentalista, da qual depende a força e importância do clero católico romano.
A tese sacramentalista reivindica que a graça de Deus seria transmitida aos homens através dos ‘sacramentos’, que seriam os instrumentos necessários dessa transmissão. Assim é que o pecador, para receber a graça de Deus, ficaria na dependência dos ministros dos sacramentos, que ficariam sendo, na realidade, a instância nessa questão. Mesmo quando alguém argumentasse que, segundo as Escrituras, somos salvos pela graça, por meio da fé, eles retrucariam, dizendo: ‘É pela graça, sim, mas para receber a graça, você precisa dos sacramentos, e como quem tem os sacramentos somos nós, você precisa mesmo é de nós, ministros dos sacramentos’! Que Deus nos livre de tais heresias!
A Data da Instituição da Ceia do Senhor
“A festa da Páscoa começava no dia 15 de Nisã, sendo o cordeiro sacrificado na tarde de 14. Contudo o dia da semana variava com a lua nova. Se Jesus comeu a ceia regular da Páscoa, foi crucificado no dia 15 de Nisã. Se comeu uma ceia no dia anterior, e se foi crucificado na hora do sacrifício do cordeiro, então o dia foi, então, o dia 14 de Nisã. Neste caso ele não comeu, de fato, a Páscoa”[12].
Na histórica controvérsia havida nos primeiros séculos da era cristã entre gregos e latinos, estes defendiam a tese de que Jesus teria comido do cordeiro pascal, após o pôr do Sol do dia 14 de Nisã, de modo que Sua crucificação teria sido na tarde do dia 15, primeiro dia da festa da Páscoa. Os gregos, ao contrário, afirmaram que Jesus, que é a nossa Páscoa, não teria comido do cordeiro pascal, mas, na qualidade de verdadeiro Cordeiro Pascal, teria sido crucificado na hora costumeira do sacrifício do cordeiro. Vamos verificar com quem está com a razão.
A Data da Crucificação de Jesus
A data da instituição da Ceia do Senhor depende diretamente da data de Sua crucificação. Se Ele tiver sido crucificado no dia 15 de Nisã, a Sua Ceia terá sido instituída nesse mesmo dia 15, após o pôr do Sol do dia 14 de Nisã, fora do contexto da Páscoa judaica.
Em João 13.1-4 lemos que Jesus e Seus discípulos comeram a Ceia “antes da festa da páscoa”, antes, portanto, do primeiro dia dos ázimos. Em João 18.28 lemos que, quando, de manhã, o julgamento de Jesus estava terminando (e Ele havia ceado na noite anterior!), os judeus ainda não tinham comida a páscoa.
Em João 19.14-16 lemos que Jesus foi julgado e crucificado no dia da preparação da Páscoa (à hora sexta – ao meio-dia), isto é, no dia 14 de Nisã, antes do primeiro dia dos ázimos.
Tanto as grandes festas de Israel como o Dia da Expiação eram figuras proféticas de fatos referentes ao Messias e que, a exemplo das próprias festas, ocorriam “no seu tempo determinado” (Levitico 23.5). Jesus havia predito que Sua morte se daria na Páscoa ( Mateus 26.2). Na Páscoa, sim, mas antes da festa. “Depois os príncipes dos sacerdotes, e os escribas, e os anciãos do povo reuniram-se na sala do sumo sacerdote, o qual se chamava Caifás. E consultaram-se mutuamente para prenderem Jesus como dolo e o matarem. Mas diziam: Não durante a festa, para que não haja alvoroço entre o povo” (Mateus 26.3-6). E assim O prenderam antes da festa, que começava com a ceia pascal. E essa decisão foi tomada a partir de uma profecia do sumo sacerdote Caifás (João 11.47-53).
A Páscoa, como sacrifício do cordeiro, era o dia 14 de Nisã (Levitico 23.5), mas a festa a que se chamava Festa da Páscoa começava no dia 15 de Nisã, com a ceia pascal. Jesus foi preso, julgado e executado na cruz antes da festa. Morreu na cruz no dia 14 de Nisã, na sexta-feira, ao crepúsculo da tarde, no momento profeticamente estabelecido na Lei para a morte do cordeiro pascal.
A Preparação da Páscoa
“No Gr. secular, paraskeuè se acha no sentido geral de “preparação”, mas o NT emprega o subs. paraskeuè sempre como expressão de tempo, para indicar o “dia da preparação” antes de um Sábado ou Festa da Páscoa: Mt. 27.62; Mc 15.42; João 19.14, 31,42”[13]
Observe-se bem que a palavra paraskeuè significa preparação em sentido geral e em todos os textos do NT em que ela aparece refere-se sempre ao dia 14 de Nisã, dia da preparação da Páscoa, dia em que era imolado o cordeiro, preparada a refeição, removido o fermento das casas, etc.
Nos anos em que o dia 14 de Nisã caia numa sexta-feira, com a ceia pascal caindo no Sábado – o qual quando uma dessas “santas convocações” coincidia com um sábado semanal, regular, dava-se-lhe o nome de “Sábado grande”, dia de descanso legal, como é o caso do sábado posterior à crucificação de Jesus – aquela sexta-feira era tanto o dia da preparação da Páscoa (João 19.14) como véspera e preparação do sábado regular (Marcos 15.42).
Véspera do Sábado Grande
Que Jesus morreu numa sexta-feira ninguém questiona, pois o dia seguinte à Sua morte era sábado, conforme se lê em João: “... para que no Sábado não ficassem os corpos na cruz, visto como era a preparação (pois era grande o dia do sábado)” (19.31).
Mas aquele não era um sábado comum, era um sábado grande. E sábado grande era aquele Sábado semanal que coincidia com um dos dias de “santa convocação”. Ora, como no mês de Nisã as “santas convocações” aconteciam nos dias 15 e 21 (primeiro e oitavo dias da Páscoa), aquele sábado não podia ser o dia 16 de Nisã, que não era dia de “santa convocação”. Tinha de ser o dia 15 de Nisã, primeiro dia dos ázimos, primeiro dia da Festa da Páscoa, dia de “santa convocação”, dia da ceia pascal, da qual Jesus não pôde participar, por haver, na qualidade de Cordeiro de Deus, sido imolado na véspera, 14 de Nisã, dia da preparação da Páscoa!
Lendo Lucas 22.15-16 no Original Grego
Dizem os Sinópticos que Jesus “desejou muito”, ou “tenho desejado ansiosamente” comer aquela Páscoa com Seus discípulos, mas não afirmam que dela eles tenham participado! Os tradutores costumam traduzir os textos pascais a partir do pressuposto generalizado de que Jesus teria participado da ceia pascal. É o que se vê, por exemplo, em Lucas 22.15-16, que praticamente todos traduzem da seguinte forma:
“Desejei muito (ou tenho desejado ansiosamente) comer convosco esta páscoa, antes que padeça; porque vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no reino de Deus”.
O texto grego original diz literalmente:
“E disse a eles, (um) desejo desejei, esta a páscoa comer conosco antes do meu sofrer. Digo pois a vós que não não como-a até (que) a cumpra em o reino de Deus”.
Assim, uma tradução mais próxima da idéia do original diria:
“E disse-lhes: desejei ardentemente comer convosco esta páscoa antes da minha paixão; digo-vos, entretanto, que não a comerei (não a como) de modo nenhum, até havê-la cumprido no reino de Deus”.
A tradução natural da expressão enfática “não não”, no texto, deveria ser de modo nenhum (nem um, nunca), como em Mateus 5.18,20,26; 16.22; João 10.28; 13.8 e não “não... mais”, como em Lucas 22.18, onde a expressão “desde agora” justifica a inserção de “mais” ou “já” (“não mais beberei” ou já não beberei”), para dar idéia de referência a fato futuro. Mas se o tradutor parte da pressuposição de que Jesus teria comido do cordeiro pascal, a sua inclinação natural será, em vez de afirmar que Jesus “de modo nenhum comeria daquela páscoa”, traduzir o texto como se Jesus tivesse dito que, após aquela páscoa, “não comeria de outra páscoa”, dando com isso a entender que daquela Ele comeria.
E observe-se que o Senhor diz haver desejado ansiosamente comer “aquela páscoa” ( a páscoa do ano da Sua crucificação), mas afirma categórico que, não obstante esse Seu desejo, não haveria de comê-la: “pois vos digo que não a como de modo nenhum”(com o verbo “comer” no presente do indicativo).
Vejamos ainda Mateus 26.29, literalmente no original grego:
“Digo, porém a vós, não não bebo desde agora (“arti”, no grego) de este o fruto da videira até o dia aquele quando o bebo convosco novo em o reino do Pai meu”.
Sua tradução natural seria:
“Digo-vos, porém, que, desde este instante, já não beberei (ou “não mais beberei”) do fruto da videira, até aquele dia em que o beberei convosco, novo, no reino de meu Pai”.
A partir daquele momento, Jesus não beberia do fruto da videira, até que venha o reino de Deus. Mas com relação a comer a páscoa, a Sua declaração é diferente. Ele não comeria aquela páscoa, de modo nenhum, embora tivesse desejado ardentemente comê-la com Seus discípulos antes de Sua crucificação. Não disse que deixaria de comê-la somente depois de participar “daquela páscoa”.
Jesus Não Comeu do Cordeiro Pascal
A refeição de despedida da qual o senhor Jesus participou com Seus discípulos e na qual instituiu a Sua ceia foi realizada depois do pôr do Sol do dia 13 de Nisã, isto é, já na noite (em Israel, o dia começava ao pôr do Sol) de 14 de Nisã (sexta-feira). Naquela ocasião, Jesus ou Seus discípulos não comeram do cordeiro pascal. Não se percebe, em nenhum dos Evangelhos, a mais leve referência ao cordeiro pascal naquela refeição. Não se lhe descrevem os elementos, exceto o pão e o vinho. E os sacerdotes se recusariam a imolar o cordeiro da Páscoa fora do dia legalmente reconhecido como 14 de Nisã e, no tempo do NT, somente eles tinham autoridade para, no templo, no dia legalmente estabelecido, imolar todos os cordeiros pascais. E, apesar de todas as divergências entre fariseus e saduceus, prevalecia o calendário oficial, dos saduceus.
A esse respeito comenta Wagner George Kümmel:
“O relato adotado por Marcos e o próprio Paulo não dizem que se trata de uma ceia pascal, e a descrição da última ceia de Jesus em Marcos tampouco contém uma indicação a respeito da ceia pascal. Falta, sobretudo, a menção ao cordeiro pascal. Por causa dessas e de outras razões, portanto, é muito improvável que Jesus tenha celebrado sua última ceia com os Seus discípulos como uma ceia pascal.”[14]
A ceia do Senhor, instituída naquela ocasião, foi, pois, algo inteiramente novo! Vinho novo em odres novos. Pois “ninguém deita vinho novo em odres velhos” (Marcos 2.22). Era o memorial da nova aliança, no qual, todas as vezes que comemos do pão e bebemos do cálice, “anunciamos a morte do Senhor, até que Ele venha” (I Coríntios 11.26). Um novo memorial, uma nova aliança – não conforme a aliança que havia sido feita no Sinai (Jeremias 31.31-32); um novo sacerdócio (Hebreus 7.12); uma nova lei (Hebreus 7.12), a lei de Cristo (Gálatas 6.2).
Não há como contestar: Jesus não participou da Páscoa legal dos judeus, porque Ele mesmo, o verdadeiro Cordeiro pascal (I Coríntios 5.7), morreu no dia e hora profeticamente revelados nas prescrições da Páscoa: 14 de Nisã, ao crepúsculo da tarde! Sim, Jesus “expirou na cruz no mesmo dia em que no Templo se imolavam os cordeiros pascais”[15] , “foi crucificado no dia em que o cordeiro pascal era oferecido, e ressuscitou no dia em que as primícias da primeira colheita eram apresentadas, as primícias dos eu dormem”[16].
Na ocasião marcada para a ceia pascal, Jesus, “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1.29), já estava no túmulo! A celebração da Páscoa judaica perdera a sua razão de ser! Os cordeiros pascais, figuras do Cordeiro de Deus, já não deveriam ser imolados cada ano! A realidade que eles figuravam havia chegado! E, em chegando a realidade, os ritos legais, que têm somente “a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas” (Hebreus 10.1), haviam-se tornado antiquados, perdendo completamente o valor. Portanto, é um contra-senso o cristão celebrar a Páscoa, pois quando Jesus morreu, Ele foi o último “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”! Paulo nos diz que devemos comemorar a Sua morte, através de algo inteiramente novo, que é a Ceia do Senhor, pois através dela, “anunciais a morte, até que Ele venha” (I Coríntios 11.26).
Maranata! “Aquele que testifica estas coisas diz: Certamente cedo venho. Amém. Ora vem, Senhor Jesus” (Apocalipse 22.20). A Tua Igreja Te espera e ama a Tua vinda!
[1] J.J. Von Allmen, Vocabulário Bíblico p. 146, ASTE, SP, 1972.
[2] Merril C. Tenney, O Novo Testamento, Sua Origem e Análise, Ed. Vida Nova, SP. p. 126
[3] Russel Norman Champlin, O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo, p.36, Lucas 2.41
[4] Catecismo da Igreja Católica, Ed. Vozes-Ed.Loyola, p.379 #1374; Conc. de Trento, Denzinger-A Schönmetzer # 1651
[5] AAS, Acta Apostolicae Sedis, 57 (1965)758.
[6] Mysterium fidei, 764
[7] Mysterium fidei, 766
[8] Jesús Espeja, Sacramentos, ed. Vozes, Petrópolis, Rio, 1992, p. 73.
[9] Paulo VI, in Mysterium fidei, 46
[10] Confissão de Augsburgo, de 1530, art. II, segunda parte
[11] A Ceia do Senhor, Editora Sinodal, 1978, pp. 23-25
[12] S.L.Watson e W.E.Ellen, Harmonia dos Evangelhos, CPB, 1964, 4.ª edição, pp. 243-244
[13] Colin Brown, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Ed. Vida Nova, Vol.ÌII, p.784
[14] Wagner George Kümmel, Síntese Teológica do Novo Testamento, Ed. Sinodal, a974, p.105
[15] Henry H. Halley, Manual Bíblico, Ed. Vida Nova, 1971, p. 395
[16] Joseph Angus, História, Doutrina e Interpretação da Bíblia, CPB, Vol. I, p. 27
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